30.6.11

o empregado do mês

Não se preocupe com isso, disseram-me, também só temos esta cópia, além disso, disseram-me, o seu nome é irrelevante para nós, completamente irrelevante. O nosso mandato exige resultados. Recolhas. Registos. Nós não estamos aqui, disseram-me, para eleger o empregado do mês, para tirar fotografias de grupo, as fotografias de grupo devem ser dos factos e os factos devem estar a uma distância suficiente que não seja possível reconhecê-los pelas caras. É essa a nossa missão. E não interprete isto como mau feitio, como desinteresse em relação às histórias, é este desinteresse em relação às histórias que nos permite escrevê-las tão curtas. Tão aparentemente simples. A história só nos parece cíclica porque nós aqui a simplificamos, ao ponto da caricatura. A verdade, disseram-me, é demasiado complexa. Ocupa muito espaço. Este pó dos gabinetes, por exemplo, é comprado em saquinhos, disseram-me. É muito mais simples. A verdade demora muito tempo.

26.6.11

e pensando bem

E pensando bem, pensei eu, alguns minutos depois, não se trata bem de mentir. Repeti-o para mim várias vezes. Não se trata de enganar ninguém, porque, pensei eu, todo o edifício emocional da velha Europa fez-se afinal de boca em boca, de festa de Natal em festa de Natal, e uma civilização construída num chão tão inquieto, como a nossa, tão movediço, precisa a todo o momento, depende, aliás, da mais imperceptível deturpação, da liberdade pequenina, que segure a torre para sempre instável. Em permanente desequilíbrio, pensei eu. Viva. Nós somos destruidores de histórias, historicamente, porque, caso contrário, não as poderíamos contar, para sempre. Não se trata bem de mentir, conscientemente, pensei eu, trata-se de correr o risco de dizer a verdade. Repeti-o para mim várias vezes. Parece-me sólido o bastante, pensei eu, como argumentação, pensava eu, enquanto assinava o contrato. Enganei-me a assinar.

24.6.11

uma ordem harmónica

Acima de tudo, disseram-me, mantê-las em ordem, ou melhor, encontrar uma ordem harmónica para as vozes e procurar impô-la, transversalmente. Uma das vantagens de sermos um museu e de termos, por assim dizer, responsabilidades históricas, é que podemos ser históricos como melhor nos convier. Usar de processos narrativos, disseram-me, cortar e colar, um ou outro adjectivo, muito raramente, uma ou outra ambiguidade, acima de tudo uma certa noção de causa e efeito, de ligação entre as coisas, de razão fundamental. Seria bastante, por assim dizer, inconveniente chegarmos ao fim e percebermos uma civilização inteira, por assim dizer, mal feita, disseram-me. Mas isso não derrota o propósito do meu trabalho, perguntei eu. É possível que sinta isso, disseram-me. Nesse caso, disseram-me, o trabalho não é seu.

21.6.11

a biblioteca de vozes

Conduziram-me depois ao meu gabinete nos andares subterrâneos. O ar era seis partes pó, os móveis, tudo, parecia que estava tudo preso ao chão por uma camada de tempo. É assim nas caves de todos os museus, disseram-me, o tempo, disseram-me, tem de se guardar em algum sítio. Senti um leve desconforto atrás do nariz. Foi então que me disseram finalmente o que eu era para fazer, que era ouvir, analisar, oportunamente catalogar, uma extensa biblioteca de vozes, que nos tinha ficado do último saque que fizéramos à memória ocidental. À memória acidental, disse eu. Corrigiram-me logo, não, disseram-me, ocidental, memória ocidental, do ocidente. Eu sei, eu ouvi bem, disse eu, estava só a prever a possibilidade do erro, de ouvir mal as vozes, estava a brincar, no fundo, disse eu. Nesse caso, disseram-me, agradecíamos que não o fizesse, disseram-me, o assunto é sério. Naquele momento espirrei.